A pandemia de COVID-19 impactou profundamente a sociedade e a forma de nos relacionarmos, nos mais variados graus e áreas. O que antes ainda era presencial, foi forçado a migrar para o digital – abruptamente. Um exemplo claro disso foi a liberação das consultas médicas à distância (telemedicina): tema até então muito polêmico, inclusive no meio médico, cujas discussões tornaram-se secundárias diante das exigências da pandemia – tema que vale outro artigo, certamente.
Pensando nas relações de consumo de maneira mais ampla, os impactos são evidentes. Os fornecedores tiveram que pensar novas maneiras de manter o seu negócio rodando, à distância. Novos canais de comunicação foram abertos, para atrair novos consumidores ou fidelizar os que antes compravam fisicamente. Aqueles que se anteciparam e pensaram de forma inovadora saíram na frente, em especial diante do cenário de incerteza sobre quanto tempo a pandemia deveria durar – foram disruptivos, criativos e diminuíram os prejuízos. Os demais, que não apostavam em uma mudança tão radical e duradoura, hoje correm atrás do tempo (e do lucro) perdido.
Os consumidores, por sua vez, alteraram seus hábitos de consumo, deixando de adquirir determinados bens e optando por adquirir outros (até então inesperados) de forma remota – via aplicativo, plataformas, telefone, sites. Depois da corrida pelos itens de proteção ao vírus, hoje os consumidores fazem compras de supermercado online, fazem aulas online, fazem ginástica online, fazem terapia online. E se enganam aqueles que acreditam que tudo voltará ao “normal” após a pandemia: o consumidor que se digitalizou dificilmente voltará a ser analógico no contexto pós-pandemia.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), datado de 1990, já era defasado diante da realidade atual do mercado de consumo – o que se tentou contornar mediante nova aplicação de suas normas abertas (via interpretação judicial) e publicação de leis esparsas, como é o caso do Decreto n. 7.962/2013 (Decreto do E-Commerce), que dispõe sobre a oferta e contratação em meio eletrônico. Não surpreende, portanto, que o próprio decreto de 2013 já tenha sido pensado para uma realidade diversa da atual (pré-pandemia, inclusive), ao abordar as compras coletivas – que hoje já caíram em desuso.
Diante de um cenário já altamente dinâmico, as relações de consumo foram novamente amoldadas pela pandemia de COVID-19. O contexto legislativo – que se move a vagarosos passos – foi desafiado a lidar com as novas problemáticas. Ainda que possam enfrentar críticas, fato é que há medidas para endereçar as relações de consumo mais afetadas pela pandemia:
- Direito de Arrependimento: A Lei do Regime Jurídico Emergencial (Lei n. 14.010/2020) prevê várias medidas emergenciais e transitórias que afetam as relações jurídicas – inclusive de consumo – que serão válidas até 30/10/2020, ou enquanto durar o estado de calamidade pública. Sob o fundamento de atuar sobre o atual desequilíbrio entre consumidor e fornecedor (ora fragilizado), suspendeu-se o direito de arrependimento (previsto no art. 49 do CDC; prazo de 7 dias para o consumidor se arrepender da compra feita fora do estabelecimento comercial) para entregas domiciliares (delivery) apenas para produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. Será que algo muda, na prática? É difícil pensar em situações envolvendo direito de arrependimento mesmo antes da COVID-19 em relação a bens perecíveis (em especial, medicamentos e alimentos).
- Companhias aéreas: A Medida Provisória n. 925/2020 (em vigor desde 19/03/2020) estabelece um prazo de reembolso de até 12 meses ou a possibilidade de aceitação de crédito pelos consumidores para utilização no prazo de 12 meses, sem penalidades contratuais. A MP foi convertida na Lei n. 14.034, de agosto de 2020, que estabelece também que, em caso de desistência pelo consumidor (de voos entre março e dezembro de 2020), este poderá optar pelo reembolso (sujeito a penalidades contratuais) ou pelo crédito correspondente (sem incidência de penalidades) para utilização em até 18 meses.
- Turismo e cultura: A Medida Provisória n. 948/2020 (em vigor desde 08/04/2020) prevê que, na hipótese de cancelamento de serviços, reservas e eventos, incluídos shows e espetáculos, o reembolso ao consumidor poderá ocorrer em até 12 meses, salvo em casos de remarcação, disponibilização de crédito ou outro acordo com o consumidor.
A postergação do reembolso para o período pós-pandemia tem o intuito de proteger os fornecedores, evitando que as empresas fiquem sem fluxo de caixa e acabem impedidas de operar, ou peçam recuperação judicial ou falência. Para o consumidor, a hipótese de reembolso no futuro é mais vantajosa do que nenhum reembolso – caso a empresa entre em insolvência.
O protecionismo acentuado ao consumidor deu lugar a um racional de Law and Economics sem precedentes: de que vale uma lei, se ela não poderá ser aplicada em prol do consumidor? Ou se ela não poderá ter eficácia?
É um indicativo de que o tratamento jurídico dado às relações de consumo no Brasil está caminhando a um novo patamar de evolução – passamos da fase de mero (e necessário) protecionismo do consumidor (fase esta que desempenhou o seu papel, dado o contexto histórico) para uma fase de ponderação econômica, seguramente mais sustentável.