O tema é controverso, inclusive no meio médico. Há aqueles que defendem e há aqueles que condenam. Fato é que a pandemia de COVID-19 acelerou a incorporação da telemedicina à nossa realidade – e não há como retroceder.
A telemedicina é uma nova modalidade de prestação de serviços médicos. Mediante o uso de tecnologias da informação e telecomunicações, permite o atendimento médico à distância por médicos, hospitais e profissionais da saúde, eliminando barreiras geográficas para a prestação de assistência médica.
É inegável que a telemedicina apresenta diversos benefícios, ao permitir que pacientes em regiões geograficamente remotas tenham acesso a médicos especialistas, reduzir tempo de espera e custo, possibilitar um atendimento mais satisfatório ao paciente, viabilizar o monitoramento remoto do paciente, além de ajudar a desafogar os já superlotados hospitais.
Em 2019, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou e regulamentou a telemedicina via resolução (Resolução CFM nº 2.227), mas advertiu que “os mesmos problemas éticos que podem ser encontrados no atendimento pessoal estão presentes na telemedicina”. A forma de edição da resolução e a falta de discussões prévias na comunidade médica geraram revolta, fazendo com que vários Conselhos Regionais de Medicina (CRM) se posicionassem contra a nova resolução. Por fim, a resolução acabou por ser revogada antes mesmo de entrar em vigor.
O assunto não é novo, mas foi acelerado no contexto da pandemia. Em 2020, a telemedicina foi autorizada novamente por força da Lei n. 13989/2020, mas apenas “enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2)”. Dentre os artigos da lei, destaca-se:
Art. 3º Entende-se por telemedicina, entre outros, o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.
Art. 4º O médico deverá informar ao paciente todas as limitações inerentes ao uso da telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta.
Fonte: Lei n. 13989/2020
Ainda que já tenha se tornado realidade, o assunto ainda é controverso – e requer atenção jurídica.
A relação médico-paciente submete-se ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e, portanto, está sujeita ao dever de informação. O paciente (em condição ainda mais vulnerável do que a dos consumidores em geral) precisa receber e compreender as informações médicas que lhe são transmitidas – para então poder exercer a sua autodeterminação. O paciente é leigo, mas precisa decidir sobre o seu futuro – o que pode pressupor compreender questões técnicas sobre a sua doença e tratamento.
É por isso que a confiança é um aspecto fundamental da relação: o paciente precisa confiar no médico para entender a sua doença e o tratamento proposto (e para concordar ou não com ele), e o médico precisa confiar no paciente para fazer o diagnóstico e ter a liberdade de recomendar o tratamento que entende mais benéfico. É uma via de mão dupla.
A falta de contato pessoal pode gerar um enfraquecimento do diálogo e do estabelecimento de uma relação de confiança. Os médicos e os pacientes estão em evidente assimetria informacional, e a existência de barreiras informativas pode levar o paciente a fazer escolhas involuntárias. E como bem aponta Teresa Ancona Lopez, o ser humano deve ser protegido em todos os seus aspectos:
Hoje, mais do que nunca, os direitos da pessoa se acham terrivelmente ameaçados não só pelo assustador progresso tecnológico, mas, principalmente, pela falta de solidariedade e respeito dentro da sociedade moderna, caracterizada, infelizmente, por todos os tipos de violência.
Fonte: O dano estético: responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 17.
Outro ponto que preocupa é o sigilo das informações médicas, que são considerados dados sensíveis (inclusive pela Lei Geral de Proteção de Dados). Será que a comunidade médica está preparada, em termos tecnológicos, para garantir a segurança dessa informação? Não se trata apenas de adotar prontuários eletrônicos e possibilitar o armazenamento de informações e exames, mas de garantir que tais dados não serão acessados por terceiros.
A telemedicina é o reflexo do avanço tecnológico, inerente ao mundo em que vivemos atualmente, mas é preciso legitimar essa nova realidade para garantir o exercício da autonomia de vontade do paciente.
A lacuna jurídica em assuntos médicos não é exclusividade da telemedicina. Diversos outros temas relevantes não foram objeto de reflexão pelo legislador, tais como: reprodução assistida, responsabilidade por diagnóstico genético, pesquisas clínicas etc. A lei não acompanha a dinamicidade dos fatos e dos avanços médicos. E o vácuo jurídico gera insegurança.
O direito precisa tutelar a telemedicina, inclusive no cenário pós-pandemia, para garantir que os direitos do paciente (consumidor) sejam respeitados e, mais do que isso, para que a prática da telemedicina seja adotada sempre em prol do melhor interesse do paciente.
Gabriela Galvão
19/08/2020 - 05:46Post excelente!
Assunto extremamente controverso, mas que é inevitável debatermos.
Ainda são poucos os médicos que pensam sobre isso.
Na Radiologia, área em que estou me especializando, o processo acaba sendo facilitado por termos menos contato direto com o paciente. Ainda assim, há muitos aspectos a serem discutidos e esclarecidos.
Fundamental para nós médicos conhecermos os aspectos jurídicos.
Obrigada pelas informações!