Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) proferiu uma decisão inovadora e controversa: pode o Código de Defesa do Consumidor (CDC) ser aplicado analogicamente em defesa dos animais?
Em dezembro de 2019, por meio de denúncias anônimas, a Polícia Civil prendeu diversas pessoas em uma operação de desmonte de uma rinha de cachorros em Mairiporã, grande São Paulo. Os 19 animais encontrados com vida no local, todos da raça pit bull, estavam muito machucados. O Instituto Luisa Mell (uma ONG que atua no resgate, recuperação e adoção de animais feridos ou em situação de risco) – a pedido das autoridades – abrigou e tratou de 12 animais feridos que foram resgatados, arcando com os custos de seu tratamento de saúde, na condição de fiel depositário dos animais. Essa foi a base da argumentação utilizada para defender a legitimidade do Instituto para ingresso na ação penal (como assistente de acusação) e o interesse na condenação dos responsáveis pelos maus-tratos aos animais.
Contudo, o artigo 268 do Código de Processo Penal autoriza apenas a intervenção como assistente de acusação pelo próprio ofendido, mas há exceções na lei. A decisão de primeira instância (reformada pelo TJSP) concluiu pela impossibilidade de acolhimento do pleito do Instituto por falta de previsão legal.
A decisão proferida pela 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo no mandado de segurança n. 2027947-97.2020.8.26.0000 habilitou o Instituto Luisa Mell como assistente de acusação no processo penal, que envolve os crimes de maus-tratos a animais, associação criminosa, corrupção de menor e contravenção de jogo de azar.
No acórdão, o relator consigna que há duas correntes no caso: uma de cunho unicamente patrimonial, e outra vinculada ao propósito de prezar pela correta aplicação da lei. Por qualquer ângulo que se analise a questão, a decisão efetivamente merecia reforma.
Primeiro: ao ter arcado com os custos de tratamento e abrigo dos animais, o Instituto possui inegável interesse econômico (futuro ressarcimento em caso de condenação criminal). A habilitação do Instituto não decorre apenas da natureza das suas atividades, mas sim da sua relação direta com a causa. Segundo: a legislação prevê exceções à regra do art. 268 do Código de Processo Penal, como é o caso dos artigos 80 e 82, III e IV, do CDC, que preveem a possibilidade de participação de associações, entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, como assistentes em processos envolvendo crimes contra as relações de consumo.
“Ante a semelhança entre as hipóteses, nada obsta que se estenda a previsão ao presente caso. Repita-se que, mais que mero interesse indireto derivado de seus fins institucionais, a ONG impetrante tem interesse econômico direto no desfecho da ação, dado o ônus de cuidar dos animais atribuído por autoridade pública”.
Acórdão
E foi com base nessa analogia com o CDC que a decisão foi revertida e o Instituto foi autorizado a ingressar como assistente na ação penal. Ou seja, além do interesse econômico do Instituto, o TJSP concluiu que era necessário prezar pela correta aplicação da lei.
Não há dúvidas de que essa foi a decisão mais justa para o caso – e é justamente por isso que o caráter inovativo e a argumentação jurídica são louváveis. Mas a dúvida é: a decisão é legal?
Exceções precisam ser respaldadas em lei, sob pena de insegurança jurídica. O artigo 268 do Código de Processo Penal é a regra, e o CDC é a exceção. O legislador autorizou as exceções que entendeu pertinentes e, em tese, não cabe ao Poder Judiciário legislar. Obviamente, a analogia com o CDC e os crimes contra as relações de consumo parece válida a quem examina o caso buscando a saída justa, mas fato é que não há lei aplicável ao caso concreto que ampare esse entendimento. Infelizmente, esse não é um caso de crime contra as relações de consumo.
Novamente, o Poder Judiciário se vê encurralado pela falta de normatividade e precisa fazer “justiça com as próprias mãos”. A lacuna legislativa em matéria de direito dos animais não é novidade e precisa ser urgentemente endereçada (como foi analisado em outro post). As alternativas são: (i) decisões injustas ou (ii) decisões justas, porém juridicamente questionáveis. Nenhuma delas atende aos interesses da sociedade.
Reitero: louvável o entendimento da 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que demonstrou estar atenta aos anseios da sociedade e à necessidade de adotar uma postura de vanguarda no tema da proteção animal, prezando pela correta aplicação da lei. Só falta o Legislativo acompanhar.