Amanda Cascaes

Amanda Cascaes

MEDICAMENTOS OFF-LABEL: DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS

Recentemente, no contexto da pandemia de COVID-19, a discussão sobre o uso de medicamentos off-label veio à tona. O uso de hidroxicloroquina, dexametasona, ivermectina e tantos outros medicamentos para combater a COVID-19 foi questionado, diante da falta de certeza da sua eficácia off-label. Mas essa discussão não é nova, especialmente no mundo jurídico.

O uso off-label é aquele que não segue a bula do medicamento, ou seja, que não recebeu aprovação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para aquela indicação de uso. Contudo, isso não significa dizer que não há eficácia na prática – apenas que não há eficácia comprovada ou respaldada por estudos clínicos. Isso faz com que o uso off-label seja enquadrado como um uso “experimental”. A bula da hidroxicloroquina, exemplificativamente, menciona a sua indicação para tratamento de artrite reumatoide, lúpus eritematoso e outras doenças – e não de COVID-19.

A posição do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) avaliou o tema em 2019 e decidiu que o Poder Público pode ser obrigado a fornecer medicamentos sem registro na ANVISA, desde que haja mora irrazoável do órgão em apreciar o pedido – isto é: prazo superior ao previsto na Lei n. 13.411/2016, que é de 120 dias para a categoria prioritária e de 365 dias para a categoria ordinária (Recurso Extraordinário n. 657718/MG).

A decisão estabeleceu três requisitos para tanto: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil; (ii) a existência de registro do medicamento em agências de regulação no exterior e (iii) a inexistência de substituto terapêutico registrado no Brasil. Para casos de doenças raras e ultrarraras, o registro na ANVISA pode ser dispensado, uma vez que o laboratório pode não ter interesse comercial em solicitar o registro. Presentes esses requisitos, o Estado pode ser obrigado a fornecer o medicamento – em caráter excepcional.  A regra geral, contudo, permanece sendo a de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, ainda que pela via judicial.

A posição do STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também já analisou o tema, ao julgar o Recurso Especial n. 1.657.156/RJ (recurso repetitivo) no qual se discutia a concessão pelo Poder Público de medicamentos não constantes na lista do SUS (Sistema Único de Saúde). Ao acolher embargos de declaração opostos pelo Estado do Rio de Janeiro, o STJ complementou a decisão para fazer constar na decisão que obriga o fornecimento do medicamento, ao invés de “existência de registro na Anvisa”, a “existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência”. Isso significa dizer que, segundo a decisão, o Poder Público não deve ser condenado judicialmente a fornecer medicamentos para usos off-label.

Por outro lado, em recentes decisões (p. ex. Recurso Especial n. 1.721.705/SP e Recurso Especial n. 1.729.566/SP), o STJ determinou que planos de saúde são obrigados a fornecer medicamentos off-label eventualmente prescritos pelo médico do paciente, sendo este o único critério. É importante registrar que a obrigação imposta pelo STJ aos planos de saúde não abarca medicamentos sem registro na ANVISA, mas apenas medicamentos registrados, ainda que para outras finalidades (off-label):

As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA. Precedentes.

O plano de saúde não pode negar o fornecimento de medicamento off label. Precedentes.

AgInt no AREsp 1429511/SP, julgado em 16/03/2020.

Por outro lado, (i) a mesma obrigação somente é imposta ao ente público quando a finalidade de tratamento pretendida já tenha sido previamente reconhecida pela ANVISA e (ii) a avaliação médica não vincula o juiz, que pode negar o pedido de fornecimento do medicamento com base na conclusão de que o seu uso não é imprescindível ou eficaz.

Dois pesos e duas medidas

O que chama a atenção na posição adotada pelo STJ é a diferenciação de tratamento quando o medicamento off-label deve ser fornecido pelo Estado ou por particulares (planos de saúde). A origem da verba não deveria ser um fator determinante para a decisão sobre o direito ou não do paciente de receber tratamento médico (dito experimental).

Na saúde pública, não se questiona que há um grave problema de escassez de recursos. O Sistema Único de Saúde (SUS) – ressalvadas todas as suas (justas) qualidades – luta para fazer muito com pouco. Mas há outros ângulos envolvidos. Não se pode esquecer que o setor privado também compõe o sistema único de saúde. Certamente o plano de saúde não acha razoável bancar um tratamento que não tem eficácia comprovada.

Contudo, o ângulo que deveria ser o mais importante de todos: é justo que um paciente do SUS não possa se beneficiar de um tratamento off-label? O médico recomenda o tratamento, mas nem sempre há quem esteja disposto a pagar a conta.