A questão envolvendo o superendividamento de consumidores não é nova no Brasil. Tanto que o Projeto de Lei do Superendividamento (PL n. 283/2012, convertido no PL n. 3.515/2015) existe há 8 anos.
Entende-se por superendividado aquele consumidor (pessoa natural) que não tem condições de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer o mínimo existencial. A preocupação é voltada também ao consumidor superendividado vulnerável, grupo que consiste basicamente em aposentados e pensionistas, em um cenário de grande facilidade de obtenção de crédito.
Há quem diga que o PL é a alternativa segura no pós-pandemia, como forma de evitar o litígio, desafogar o Judiciário e promover segurança jurídica nas relações de consumo. Estima-se que a pandemia deve aumentar o número de superendividados dos atuais 30 milhões de brasileiros para 42 milhões, segundo projeções de economistas.
O que o PL prevê?
O PL – que pretende alterar artigos do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Estatuto do Idoso – baseia-se em três pilares: boa fé, preservação do mínimo existencial e planejamento de pagamento. A finalidade principal é permitir que o devedor de boa fé tenha condições de negociar com mais de um credor, por meio da elaboração de um plano de pagamento, preservando o mínimo existencial.
A requerimento do consumidor superendividado, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, no qual será designada audiência com a presença de todos os credores. Nessa audiência, o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos. Não havendo acordo, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório.
Em que pese o PL preveja que os acordos devem conter “condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem o agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas”, não se sabe como isso será observado/fiscalizado na prática. Inclusive, o PL prevê que, no acordo, deve constar a data a partir da qual o nome do consumidor será removido dos cadastros negativos ou restritivos de crédito.
O PL prevê também outras medidas que reforçam o dever de informação dos fornecedores, boas práticas de crédito responsável e combate ao assédio de consumo, assim como visam a maior conscientização dos consumidores, como a entrega de cópia do contrato, informação correta sobre condições de publicidade, de modo a impedir que o consumidor seja enganado por ofertas falsamente vantajosas etc. Em relação à alteração ao Estatuto do Idoso, o PL prevê que “não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso”.
Por que aprovar agora?
Como já dito, o PL está parado há 8 anos. Por que somente agora ele voltou a ser tão debatido?
Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), em 2019, cerca de 30 milhões de brasileiros estavam superendividados, ou seja, sequer tinham condições de pagar as próprias dívidas. Com a pandemia, esse número certamente vai aumentar ainda mais.
Contudo, não é apenas o consumidor (destinatário do PL) que está com problemas financeiros; os fornecedores também estão. Por isso o contexto atual resultou na mobilização da comunidade jurídica para a aprovação urgente do PL – que se espera que tenha impacto positivo na economia, gerando efeitos macro e microeconômicos.
O PL permite uma conciliação em bloco do consumidor com todos os seus credores – o que aumentará de imediato a liquidez das famílias, recuperando o seu poder de compra com base na reestruturação das dívidas e preservação do mínimo existencial. Uma melhor gestão do crédito permite esse resgate do poder de compra, ao mesmo tempo em que aumenta a liquidez no mercado e reativa a economia com aumento da produção, aumenta a geração de empregos e a arrecadação tributária para o Governo.
Com a aprovação do projeto de lei é possível que as famílias refaçam o planejamento das dívidas e voltem a movimentar a economia com a previsão de injeção cerca de R$ 555,5 bilhões – 7,6% do PIB brasileiro.
Fonte: Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON)
O plano parece perfeito – só é preciso ter cuidado para não apostar que o PL seja uma solução ilusória. Certamente não será apenas o PL que “salvará” a economia pós-pandemia: é apenas mais um elemento da equação. Não há dúvidas que o PL será favorável para consumidores, fornecedores, para o Judiciário (que não será soterrado de demandas) e para a economia em geral – a dúvida é se o PL será suficiente.
Outro ponto de atenção é que a mesma bola de neve que levou o consumidor ao superendividamento pode ser justamente o efeito colateral da aprovação do PL. O consumidor recupera o seu poder de compra apenas para voltar a consumir além de suas possibilidades. Favorável para a economia, certamente, mas será que também para o consumidor? É importante que o PL – pensado como um auxílio ao consumidor, que precisa de ajuda para se reestruturar – não seja agora um instrumento para auxiliar a economia, em detrimento do consumidor.